O impacto da tecnologia e da digitalização
Em 2000, os registos clínicos, da maioria dos hospitais nacionais, eram realizados em papel. Todo e qualquer aluno, desse tempo, é capaz de se lembrar da dificuldade que, por vezes, se sentia para decifrar o que estava escrito, por médicos e professores que acompanhavam. Em alguns serviços de radiologia o exame era redigido na hora, em papel, no processo físico , que tinha de acompanhar o doente. Nessa altura seria impensável a evolução digital e robótica que se veio a desenvolver, na saúde, nas duas décadas seguintes.
A digitalização da radiologia do Hospital de São Marcos, em Braga, foi notícia de telejornal, na altura um grande avanço. Apesar de já possuir, nessa altura, de uma programa para registo de diários, notas de alta, relatórios médicos variados, grande parte da atividade clínica era realizada no processo clínico físico, havendo uma capa para cada doente internado e uma folha , denominada H1, para avaliação no serviço de urgência.
Claro que o papel era uma salvaguarda da avaliação e decisão médica, bem como de registos de enfermagem. Contudo, muitas vezes eram textos inteligíveis e de difícil re-observação, pois eram enviados para o arquivo físico central.
Lentamente os programas de apoio clínico foram sendo aperfeiçoados e a sua utilização massificou-se, a nível nacional. Desde os cuidados de saúde primários aos cuidados hospitalares, quase tudo se faz sem papel, pelo menos fica uma base de registo fácil de consultar, apesar de, por vezes, ser necessária a impressão de documentos.
A progressão da engenharia informática a nível da criação de software de saúde foi imensa. Hoje quase não se usa papel ou processo físico. Uma falha no sistema informático gera um caos institucional, difícil de descrever, tal a atual dependência nos sistemas informáticos. Quebras no sistemas, mesmo que transitórias, ninguém deseja e constantemente se anseiam aperfeiçoamentos para maior simplificação do trabalho clínico, sobretudo das tarefas mais repetitivas, como o ato de prescrição de receituário crónico.
O trabalho desenvolvido por equipas multidisciplinares permitiu uma evolução mais acelerada dos sistemas informáticos. Cada vez mais, existem empresas geradoras de software que dispõe nas suas equipas do saber médico, de enfermagem, de farmácia e de desenho/programação digital. O trabalho desenvolvido por equipas multidisciplinares permite uma evolução mais acelerada dos sistemas informáticos, dado que as dificuldades são antecipadas e as soluções desenvolvidas, antes da colocação do programa no mercado.
Hoje dispõe-se de uma imensidão de programas para trabalho dos diversos profissionais de saúde. O difícil é manter a sua agilidade, garantir a constante atualização e comunicação intersoftware. Faria sentido ver o doente como único, individual, num único processo, disponível entre instituições, em que seus dados seriam acessíveis nos diversos locais onde fosse consultado, desde centros de saúde, hospitais ou IPO. Faria todo o sentido que o médico hospitalar pudesse ter acesso às análises do doente, realizadas em contexto ambulatorial, como faria sentido o médico de família poder aceder ao relatório de um exame de imagiologia realizado no IPO. Claro que, um acesso com o necessário cumprimento das recomendações de consulta de dados clínicos.
O registo clínico, atual, pode ser completado com apoio de imagem, com a utilização de determinados softwares, instalados num simples telemóvel. Por exemplo, uma ferida que exija cuidados diários pode ser fotografada, antes e depois do tratamento, e seu acompanhamento torna-se mais fácil, mesmo para os profissionais de saúde que não observaram o doente no primeiro dia e que, de outra forma, não teriam noção real da sua evolução. Um registo de uma ferida, por mais descritivo que possa ser, nunca se assemelha a uma observação fotográfica de qualidade.
Também, as notificações geradoras de alertas podem ajudar na redução do risco clínico. Softwares que sejam desenhados com uma cuidada utilização das cores, com bons ícones de alerta, em locais destacados, podem reduzir o risco de uma prescrição geradora de alergia ou anafilaxia, reduzindo o risco de complicações médicas, ou mesmo de morte.
Em contexto de internamento, dar destaque, com cor, ao doente que necessita de isolamento, por um qualquer motivo, como é o caso da doença do momento a COVID19, pode reduzir o risco de falha de utilização de protecção individual e que, apesar de individuais, acabam por proteger todas a equipa cuidadora do doente. Uma falha de um só elemento pode colocar uma equipa em risco de contaminação.
Claro que, para além do lado clínico, os softwares permitem melhorar a eficiência das equipas e instituições, reduzindo deslocações, comunicações desnecessárias e redundantes, tornando as instituições de saúde mais céleres na realização das tarefas. A utilização processual acaba por gerar registos, atos, todos eles quantificáveis e passíveis de utilização para uma melhoria do ato clínico. Por exemplo, é possível num serviço de urgência hospitalar um doente ser admitido administrativamente, posteriormente, triado e a partir daí serem gerados alertas para médico, enfermeiros e auxiliares, sem que estes se vejam ou comuniquem, por outros meios, sem colocar o doente em risco, bem pelo contrário, otimizando os tempos e a organização do trabalho das diversas equipas envolvidas.
Os softwares de saúde vieram para ficar, fazem parte do moderno SNS, podem melhorar muito o trabalho dos profissionais de saúde, a relação entre os mesmos e o doente, desde que os programas sejam bem desenhados. A evolução dos mesmos é imprevisível, mas necessária, dado que diariamente é possível identificar potenciais melhorias, desde registo clínico; recolha de sinais vitais; a softwares de avaliação imagiológica simplificada e, por isso, potencialmente geradores de massificação ecográfica para médicos não imagiologistas.
Arnaldo Pires
Consultor em Medicina Interna, Hospital de Braga
Competência em Gestão de Serviços de Saúde, pela Ordem dos Médicos